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1964: o ano que não terminou

Enviado por Gilberto Godoy
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     O debate sobre o golpe de 1964 está vivo porque muitas das questões daquele ano perduram 50 anos depois. Debatê-las contribui para exorcizar os fantasmas. A ditadura acabou há 35 anos. Seu legado continua presente na economia, na política, na educação, nas grandes obras.

     Em 15 de novembro de 1939, 50 anos após a quartelada que derrubou o Império, a primeira página do então principal jornal do país, O Estado de S.Paulo, não publicou uma única linha a respeito das cinco décadas da República proclamada pelo marechal Deodoro da Fonseca, em 1889. No Rio de Janeiro, a capital da República, a primeira página de O Globo estampou uma foto do ditador Getúlio Vargas num ato alusivo ao cinquentenário, com uma manchete anódina: “Honra aos ideais de 1889”. Em outubro de 1980, mês do cinquentenário da revolução que pôs fim à República Velha, os editores de O Globo avaliaram que o assunto não merecia espaço em suas páginas. O Estadão publicou uma série de reportagens, com entrevistas de revolucionários de 1930 que continuavam vivos. Em 3 de outubro de 1980, a Folha de S. Paulo fez uma menção ao cinquentenário na primeira página, deu um editorial, um artigo na seção “Tendências e Debates” e promoveu um evento sobre a data. Nada transpirava polêmica.

     Cinquenta anos depois que as tropas comandadas pelo general Olympio Mourão Filho deixaram Juiz de Fora em direção ao Rio de Janeiro para apear o presidente João Goulart do poder, o golpe de 1964 continua a ser divisivo. A observação foi feita pelo jornalista Elio Gaspari, autor de As ilusões armadas (editora Intrínseca), série de livros sobre a ditadura que traz a melhor reconstituição histórica do regime autoritário instaurado em 1964. Desde o último fim de semana, os jornais vêm publicando caudalosas edições especiais sobre a data, com minuciosas rememorações do período, entrevistas e artigos com as mais variadas versões. Novos livros sobre o golpe, sobre Jango, sobre militares no poder e sobre as arbitrariedades da ditadura contam-se às dezenas. Há espaço até para revelações sobre as circunstâncias em que personagens perseguidos pela ditadura desapareceram ou foram torturados. O assunto transbordou para as ruas. Houve marcha de defensores do golpe, que atribuem aos militares as virtude de ter nos livrado do comunismo – e outras marchas de caráter antagônico, formadas por gente que repudia o golpe e as ideias de quem caminhava do outro lado da rua.

     Essa comoção diz algo a respeito de como aqueles anos que antecederam e se seguiram ao golpe de 1964 foram conturbados na política brasileira. Muitas das questões do período continuam a render polêmicas acesas. Jango era um presidente despreparado para o cargo ou um reformista interessado em atenuar as contradições sociais brasileiras, torpedeado pelo conservadorismo nacional? O golpe nasceu nos Estados Unidos, por causa da Guerra Fria então em curso contra a União Soviética, ou foi obra de brasileiros? A tortura dos adversários da ditadura foi obra de grupos radicais das Forças Armadas que agiam com autonomia ou era uma política de Estado? 

     A controvérsia em torno delas não se refere apenas a nosso passado. Ela diz muito também a respeito de como muitas das questões em discussão em 1964 continuam presentes na sociedade brasileira. Elas se explicam, em parte, porque muitas das atuais lideranças políticas do Brasil são egressas daquele período. Basta lembrar que o segundo turno das eleições presidenciais de 2010 foi disputado por Dilma Rousseff, ex-guerrilheira da Var-Palmares, um dos grupos de luta armada contra a ditadura, e José Serra, presidente nacional da União Nacional dos Estudantes (UNE) em 1964. Não é só. A herança da ditadura continua a forjar nosso futuro, diz o historiador Daniel Aarão Reis.

     Talvez a pior chaga deixada pelo regime militar seja a extrema desigualdade de renda no Brasil. O problema já existia antes da deposição de Jango. Mas o desequilíbrio na distribuição de renda foi alçado ao topo do ranking mundial pelo regime militar. Se dermos à desigualdade notas de 0 a 100, pelo Índice de Gini (uma medida da má distribuição), a chaga aumentou de 53,5, em 1960, para 60,7, em 1990. Isso ocorreu pela combinação de vários fatores: as décadas de hiperinflação, que corroeram mais fortemente a renda dos mais pobres, a dificuldade das negociações trabalhistas durante a ditadura e a ausência de uma rede de proteção social no país.

     A desigualdade só passou a recuar após o Plano Real e a derrota da hiperinflação, e só voltou ao nível de 1960 em 2010. Retornamos agora ao ponto em que estávamos mais de 50 anos atrás, enquanto a maioria dos países desenvolvidos e em desenvolvimento melhorou ao longo do período. Hoje, o Brasil está entre os 15 países com pior distribuição de renda no mundo, muito atrás de um bloco intermediário que inclui nações como Estados Unidos, Argentina, Turquia e Japão (nenhum deles referência em igualdade). O nível persistente de desigualdade com que entramos no século XXI é um problema. E não apenas por uma questão moral – afinal, não se pode saber se as condições de vida numa sociedade são decentes ou não apenas a partir da observação desse quesito.

     Alta desigualdade causa menor crescimento econômico, conforme mostraram, nos últimos anos, economistas renomados como o turco radicado nos EUA Dani Rodrik ou o americano Joseph Stiglitz. O efeito se dá porque a distribuição de renda ruim demais prejudica a educação, a capacidade dos cidadãos de escolher onde morar e trabalhar, a capacidade de cobrar candidatos e governos e a definição de objetivos comuns da sociedade. Em 1964, nosso atraso se refletia nas discussões sobre a possibilidade de os analfabetos poderem ou não votar. Hoje, ele se espelha no desempenho pífio de nossos estudantes nos exames internacionais de educação, como o Pisa. 

     O fraco rendimento dos estudantes brasileiros é o resultado de uma aposta em que o desenvolvimento seria alcançado não pela via da educação da sociedade, mas pela industrialização da economia, conduzida pelo Estado. O desenvolvimentismo nacional-estatista já existia desde a ditadura do Estado Novo, implantada na década de 1930 por Getúlio Vargas. Mas atingiu seu auge durante o regime militar, depois de uma breve experiência no governo do marechal Humberto de Alencar Castelo Branco com a aplicação de princípios mais liberais na economia. Os resultados econômicos de uma reforma liberal, porém, nem sempre aparecem rapidamente – até hoje, são vistos no Brasil com suspeita, não como premissas razoáveis de um desenvolvimento equilibrado. Em 1967, subiu ao poder o general Artur da Costa e Silva, e com ele um novo ministro da Fazenda, Delfim Netto. Estava encerrada a experiência liberal.

     As gestões de Costa e Silva e de seu sucessor, o general Emílio Garrastazu Médici, ficaram conhecidas como o período do “Milagre Brasileiro”, com taxas de crescimento entre 9% e 14% durante sete anos seguidos – uma experiência sem igual no Brasil contemporâneo. O crescimento foi impulsionado por forte investimento estatal. Nesse período, foram criadas empresas governamentais como Correios, Embraer, Embrapa, Infraero, Serpro e Telebras. Foram construídas ou iniciadas obras como a Ponte Rio-Niterói, a usina nuclear Angra 1, a Rodovia dos Imigrantes, em São Paulo, a Rodovia Transamazônica e a Ferrovia do Aço, entre Minas Gerais e o Rio de Janeiro. Surgiram os primeiros esboços das usinas hidrelétricas de Itaipu e Tucuruí.

     Tornou-se difícil, para as gerações seguintes, dissociar crescimento, desenvolvimento, atuação do governo e grandes obras, embora nenhuma dessas coisas esteja necessariamente associada às outras. Em 2008, depois da crise financeira internacional desencadeada pela quebra do banco de investimento Lehman Brothers, a linha desenvolvimentista foi retomada pelos governos do ex-presidente Lula, um admirador confesso da economia do regime militar, e da presidente Dilma Rousseff. O ativismo estatal está vísivel na política de campeões nacionais subsidiados pelo BNDES, na retomada de grandes obras na Amazônia, como a hidrelétrica de Belo Monte, e na fé do seu poder transformador.  “O Brasil incorporou pouco a ideia de que é preciso repensar o modelo de desenvolvimento”, diz Fábio Feldmann, consultor, ambientalista e ex-deputado federal. “Persiste a visão desenvolvimentista, sem preocupações com o meio ambiente nem com sustentabilidade, e a ideia de que a infraestrutura desenvolverá o país.”

     Na política, a ditadura contribuiu para estigmatizar a direita, que passou a ser associada ao autoritarismo  e à violência dos governos militares. No Brasil,  é praticamente impossível encontrar um político de expressão que se diga de “direita”. Todos se apresentam como de “esquerda” ou “centro-esquerda”. Ou, para esconder o conservadorismo, simplesmente declaram que não são de direita, nem de esquerda, nem de centro, como fez o ex-prefeito Gilberto Kassab na fundação, em 2011, do PSD, hoje um dos partidos com maior representação no Congresso Nacional. A falta de um Partido Conservador, como no Reino Unido, empobrece o debate político. E contribui para que o liberalismo econômico tenha uma presença tão frágil na política brasileira quanto no começo do século XX, quando o espírito corporativista do Estado Novo, instaurado por Getúlio, varreu as ideias liberais da Constituição de 1891, a primeira da República, redigida sob a inspiração do jurista Ruy Barbosa.

     Por causa do caráter gradual da nossa migração do autoritarismo para a democracia, sem rupturas, a ditadura legou também para nossa ordem democrática um status especial para as Forças Armadas. Os militares recolheram-se aos quartéis e se afastaram da vida política – uma novidade na história da República brasileira, marcada, desde seu início, pelas convulsões nos quartéis. O preço disso foi a concessão implícita de um certo poder de veto dos comandantes militares a assuntos que lhes incomodam, como as investigações sobre as violações de direitos humanos durante a ditadura. Isso ficou evidente, em maio de 2012, na cerimônia de instalação pela presidente Dilma Rousseff da Comissão Nacional da Verdade. Há quase dois anos, ela tenta avançar, sem grandes êxitos, nessas investigações. Enquanto os outros presentes aplaudiam, os três comandantes militares se mantinham ostensivamente estáticos.

     A mesma atitude de resistência ao controle externo da sociedade se observa nas polícias militares estaduais, supervisionadas pelo Exército, conforme estabeleceu a Constituição de 1988. O brasão da Polícia Militar do Estado de São Paulo ostenta 18 estrelas, dedicadas a fatos marcantes na história da instituição – uma delas representa a participação da PM no golpe de 1964. “A segurança pública foi uma das áreas que menos avançaram na democracia, em parte por causa do corporativismo e do baixo grau de prestação de contas que as polícias têm em relação à sociedade”, diz o sociólogo Claudio Beato, coordenador do Centro de Estudos em Criminalidade e Segurança Pública da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), consultor de governos tucanos. “Elas não estão acostumadas a prestar contas do que fazem. São corporações muito fechadas.” Os abusos e a tortura – introduzida pelo Estado Novo (1937-1945) e massificada pelos militares como instrumento corriqueiro de repressão – continuam práticas corriqueiras nas delegacias, apesar dos avanços recentes na melhor formação dos policiais.

     Desde o fim da ditatura, caminhamos muito na construção de uma sociedade democrática. O copo está mais cheio que vazio. “A Constituição de 1988 é um marco inamovível na institucionalidade brasileira. A presença hoje capilar do Judiciário não tem paralelo na história”, diz o cientista social Luiz Werneck Vianna, pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro(PUC-RJ). “Os litígios encontram formas de solução, reguladas pela leis, pelas instituições e pelo Judiciário. Isso é um avanço imenso.” Nada disso significa, porém, que a democracia brasileira esteja próxima de atingir o estágio da perfeição. A persistência de muitos legados da ditadura na atual sociedade brasileira revela também a perseverança de traços da cultura autoritária presente na formação da sociedade brasileira. O debate sobre o golpe de 1964 está vivo porque muitas das questões daquele ano perduram 50 anos depois. Debatê-las contribui para exorcizar os fantasmas. 

     Fonte: Guilherme Evelin, Leandro Loyola, Marcelo Moura, Marcos Coronato, Ruan de Sousa e Vinícius Gorczeski - Revista Época.

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