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Precariado: o trabalho em crise - Leonardo Cazes

Enviado por Gilberto Godoy
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     Jovens trabalhadores com empregos temporários, mal remunerados e sem os direitos da geração dos seus pais constituem um novo ator político estudado no Brasil e no exterior. Ainda muito discutido por pesquisadores, o conceito de ‘precariado’ tenta dar conta das transformações econômicas ao longo das últimas décadas e estaria na origem das manifestações que explodiram na Europa e nos EUA a partir de 2008 e no Brasil ano passado.

     Imigrantes e membros de minorias, jovens com ensino superior frustrados e sem expectativas profissionais, filhos de mineiros, metalúrgicos, estivadores e outras profissões típicas do capitalismo industrial, tão diferentes entre si, estes são os três principais grupos que, na concepção do economista britânico Guy Standing, compõem o precariado.

     Autor do livro “Precariado: a nova classe perigosa” (Autêntica), recém-lançado no Brasil, Standing aponta que todos vivem uma experiência de insegurança e falta de identidade baseada no trabalho: os imigrantes pela falta de direitos e renda estável; os recém-formados pela falta de perspectiva de futuro após descobrirem que o alto preço pago pelo diploma não tem o retorno esperado após a faculdade; e os filhos da antiga classe trabalhadora que, sem a opção de seguir as carreiras dos pais, ocupam postos de menor status socioeconômico.

     O economista localiza o surgimento do precariado — classe que, frisa ele, está presente em todos os continentes — na década de 1970, com a emergência do neoliberalismo e a adoção, nos anos 1980, das políticas de flexibilização do mercado de trabalho, que abrangiam o salário, o vínculo empregatício e a habilidade dos trabalhadores, de forma que esta fosse ajustada de acordo com as necessidades. Na prática, tratava-se do desmonte das estruturas de proteção social que tinham sido construídas na Europa e nos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial, pilares da cidadania fordista e do Estado de bem-estar.

     Após a crise iniciada em 2008, o precariado, diz Standing, tem crescido ainda mais rápido.   "— Não há números confiáveis sobre isso, mas minha aposta é que na Europa Ocidental, particularmente em países como Portugal, Espanha, Grécia e Itália, e no Japão e na Coreia do Sul, o precariado corresponde agora a mais de um terço da população adulta, enquanto antes da crise era um quarto. O sentimento de privação profunda vem crescendo, forçando mais pessoas a se olharem no espelho de manhã e ficarem com mais raiva em relação a sua condição. A espontaneidade dos protestos públicos atesta a energia que está nas ruas. Muito em breve, o establishment político vai ter que acordar e olhar para o precariado. Caso contrário, será varrido para fora da cena — afirma o economista, em entrevista por e-mail ao GLOBO."

     Para Standing, o precariado seria “a nova classe perigosa” porque todos os grupos que o compõem rejeitam as forças políticas tradicionais e o que representam. Além disso, há um movimento progressista dentro da classe que deseja uma transformação mais radical da ordem econômica e política. Contudo, por haver um sentimento de frustração disseminado e na falta de um projeto de futuro, o precariado também seria alvo fácil de políticos populistas, neofascistas e xenófobos. Os filhos da velha classe trabalhadora seriam os mais sensíveis a esse tipo de discurso:  "— O precariado representa a nova classe perigosa por duas razões. Em primeiro lugar, todos os seus membros rejeitam as velhas ideologias e os partidos políticos. Eles sabem que o neoliberalismo e o capital financeiro está contra eles, e eles sabem que os antigos social-democratas são “trabalhistas”, querendo amarrar os benefícios e os chamados direitos sociais ao desempenho do trabalho — afirma o economista, que vê uma disputa entre forças progressistas e conversadoras."   "— Em segundo lugar, há uma parte que é transformadora, na medida em que quer se tornar uma classe suficientemente unida para ser capaz de impor sua agenda no discurso político, a fim de abolir a si mesma, o precariado. Não querem apenas mais do bolo, mas sim um tipo diferente de torta, uma sociedade em que as pessoas podem seguir suas vidas em liberdade, ter acesso ao espaço público de qualidade, ter o controle de seu tempo e acesso a uma educação libertadora real, e não apenas uma preparação enquanto “capital humano”. Esta agenda pode ser utópica, mas é profundamente ameaçadora, seja no Brasil ou na Europa."

     No entanto, o conceito do que seja o precariado ainda não está consolidado entre pesquisadores do trabalho. O sociólogo Ruy Braga, autor de “A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista” (Boitempo), critica a definição do economista. O professor da USP discorda da ideia de que o grupo surgiu nos anos 1980. Pelo contrário, mesmo no auge do período de expansão fordista, após a Segunda Guerra, existia, nas margens, trabalhadores submetidos a condições precárias de trabalho e de vida. Segundo Braga, quem gozava da proteção do Estado de bem-estar social eram os brancos, adultos, nacionais, sindicalizados e qualificados, deixando de fora mulheres, negros e mestiços, e imigrantes com pouca ou nenhuma qualificação.  "— A condição de precariedade não é um tributo do neoliberalismo. A condição de precariedade é tributo da relação de mercantilização do trabalho, ou seja, desde que haja salário, venda e compra da força de trabalho, existe a condição de precariedade, que pode ser mais ou menos saliente, importante e central, mas é algo que permanece. É uma representação muito idílica você achar que a institucionalização de direitos pode superar isso. Não tem a ver com a lógica da política, tem a ver com a lógica da economia, do movimento da economia", explica Braga.

     O sociólogo identifica o precariado europeu com movimentos como os Indignados, na Espanha, e a Geração à Rasca, em Portugal, além de setores mais mobilizados na Itália e na Grécia, onde o desemprego entre a população entre 18 e 24 anos é altíssimo. Na sua opinião, os jovens não são massa de manobra para o discurso populista de direita, apesar disso ser uma possibilidade em alguns casos. Para o professor, eles estão na luta para que a União Europeia cumpra a promessa feita à geração dos seus pais, de crescimento econômico e proteção trabalhista, através de uma política de direitos sociais universais.

     Braga aponta que a mutação no mundo do trabalho europeu moveu o precariado de periferia da relação salarial fordista para o centro.  "— Esse proletariado precarizado acabou se colocando no centro da relação social em países como Espanha, Portugal, Itália, Grécia, a semiperiferia da Europa. Ainda não é o centro na Alemanha, França e Inglaterra. Mas em Alemanha, que é a grande guardiã da estabilidade monetária europeia e do neoliberalismo no continente, se você tirar da conta todos os empregos que pagam 400 euros, a taxa de desemprego é a mesma da Espanha. Ou seja, os trabalhadores que ganham esse salário, que têm um tipo de trabalho muito precário, são os que seguram a onda do desemprego. Mesmo na França ou na Alemanha, a periferia da relação salarial está se tornando o centro. E se aprofunda cada vez mais porque as políticas de austeridade rebaixam direitos e salários, o custo do valor da força de trabalho e aumenta a franja de trabalhadores precarizados, principalmente os mais jovens", explica o sociólogo.

     Em seu livro finalista do Prêmio Jabuti 2013 na categoria Ciências Humanas, Braga faz uma história dos trabalhadores precarizados no Brasil, dos governos Vargas a Lula, e reconstrói sua relação com a política. Braga reconhece que, nos últimos dez anos, houve tendências progressistas, com o aumento da formalização do mercado de trabalho, que incluiu muitos trabalhadores na proteção trabalhista. A grande questão dos estudos do trabalho hoje, diz ele, são se a formalização já é suficiente para retirar o empregado de uma condição precária. O sociólogo argumenta que não e se apoia em números como o aumento da taxa de acidentes e da taxa de rotatividade. Segundo o professor, na última década, foram criados 2,1 milhões de empregos por ano, mas 94% pagam até um salário mínimo e meio.  "— Eu discordo daqueles que acham que a legislação trabalhista no Brasil tem uma ampla cobertura, que encareça o trabalho, porque não há cláusula contra demissão imotivada e isso institucionaliza a rotatividade do trabalho. As empresas demitem e contratam o tempo todo. De 2009 para 2011, por exemplo, o número de meses que o trabalhador fica no emprego caiu de 18 para 16. Os acidentes de trabalho tiveram um aumento exponencial em dez anos, houve crescimento das terceirizações. São indícios claros de que o enorme contingente absorvido pelo mercado foi absorvido em condições reais precárias de trabalho, mesmo que não contratuais", aponta o professor da Unicamp.

     Giovanni Alves, sociólogo e professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Marília (SP), utiliza uma outra noção de precariado. Para ele, assim como para Braga, não se trata de uma classe social nova, como defende Standing, mas uma parcela do proletariado. Alves, entretanto, restringe o precariado a um grupo específico: jovens altamente escolarizados que acabam assumindo empregos subremunerados, em uma situação que se aproxima daquela vivida em muitos países europeus.

     Alguns números corroboram a tese: o salário médio de quem estudou mais de 12 anos caiu, entre 2002 e 2011, 8%, já descontada a inflação, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad). Apesar do alto grau de instrução garantir melhores chances no mercado de trabalho, o chamado “prêmio” em comparação a quem estudou menos está caindo. Ter mais escolaridade é sempre melhor em termos médios, mas a diferença entre os mais qualificados e o resto da população era imensa na década de 1970 e bem menor atualmente.  "— Não se deve confundir alta escolaridade com alta qualificação para inserção no mercado de trabalho. A reclamação dos empresários diz respeito a setores específicos onde se tem gargalos da formação profissional. No geral, apesar do aumento do rendimento médio do trabalho, os salários ainda são baixos, pelo menos para cobrir os anseios de consumo e os custos de reprodução social são relativamente altos: serviços públicos sucateados e serviços privados caros e de péssima qualidade caracterizam o Brasil hoje. O Brasil do neodesenvolvimentismo criou, de fato, muitos postos de trabalho, mas não significa emprego de qualidade capaz de significar a realização do sonho profissional dos muitos que saem ano após ano dos bancos universitários", afirma o professor, autor de “Dimensões da precarização do trabalho” (Editora Praxis).

     Mesmo discordando sobre quem faria parte do precariado brasileiro contemporâneo, os dois sociólogos acreditam que essa massa de trabalhadores vive uma situação de frustração parecida com a dos europeus: um emprego ruim, sem perspectiva de futuro e sem enxergar formas de sair dessa situação. Para Braga, essa frustração pode se transformar em indignação. Alves vê uma multidão de jovens-adultos altamente escolarizados insatisfeitos socialmente e carentes de uma vida plena. Na sua opinião, o precariado é filho do neodesenvolvimentismo dos anos Lula e Dilma que agora exige mudanças sociais desse mesmo padrão de desenvolvimento.  "— Não se trata de que a ascensão social pela educação não ocorreu, mas sim que a maior parte dos jovens começa a perceber que as expectativas contidas nas promessas da alta escolaridade não se realizaram e nem vão se realizar efetivamente nos termos do sonho salarial. Enfim, como diz a canção da Legião Urbana, “o futuro não é mais como era antigamente” — acredita Alves.


     Fonte: O Globo/Prosa

 

Comentários

  • por: Cristiane Gomes do Amaral em domingo, 16 de março de 2014

    ...triste realidade. Seria muito importante estes estudos/análises serem incluídos/discutidos no ambiente acadêmico. Só se reforça a importância da 'formação' dos alunos, e nunca sobre a importância de um 'preparo' para o enfrentamento do mercado de trabalho o qual os alunos terão que enfrentar. Seria proposital?? ;)

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