Aguarde por gentileza.
Isso pode levar alguns minutos...

 

O medo que nos tribaliza - Editorial Gazeta do Povo PR

Enviado por Gilberto Godoy
o-medo-que-nos-tribaliza---editorial-gazeta-do-povo-pr

   Daqui a algumas décadas – quando esses inícios do século 21 estiverem em definitivo no passado – é provável que nos lembremos deles como um “medievo de medo”. E sobre o medo diremos que corrói as relações sociais – e, com elas, todo o resto, qual cupim na madeira. Ainda não temos a dimensão exata do estrago da chamada sociedade apavorada, mas sabemos o bastante: cidades acuadas pela violência e por seus efeitos são cidades em que o conhecimento não é dividido, porque a convivência foi afetada na jugular. Ela decresce. Um punhado de pessoas que não têm nada em comum – fora dividir o mesmo território – outra coisa não é senão a negação do processo civilizatório.

   De modo que o medo se tornou o maior dos nossos problemas. Os americanos de outras datas se deram conta disso. É o país do mundo em que mais se estuda a felicidade – e seus efeitos, inclusive, sobre a economia. E também onde mais investiga os efeitos nefastos do medo, e o atentado diário que esse fenômeno faz à geração de riquezas, com tudo o que demanda dessa palavra. Pensemos em estudos como o de Barry Glassner, autor de Cultura do medo.

   É curioso o que acontece no Brasil. As principais cidades estão numa zona endêmica de violência, caso lhe sejam aplicados os critérios internacionais. Nossos dados são superlativos, mas a violência e seu filhote, o medo, estão longe de mobilizar a sociedade. O número de pesquisas é insuficiente. A sociedade organizada tem um discurso a respeito, mas tropeça na hora de agir. A explicação é evidente – lamentamos, protestamos, mas continuamos achando, impotentes, que se trata apenas de uma incumbência do Estado. Muitos diriam que não poderia ser diferente. A violência alcançou tamanho grau que o homem comum só consegue responder com silêncio. É o que qualquer um faz quando se sente impotente. Mas já são horas de romper esse círculo do vício e provocar uma cultura de sociedade da justiça e da paz, como se dizia. Ou reagimos com uma agenda positiva, ou vamos nos empobrecer ao extremo, fazendo apostas torpes na sociedade vigiada. Cabe à sociedade organizada dizer “alto lá”.

   A divulgação do 9.º Anuário Brasileiro de Segurança Pública – produzido com a base de dados dos governos estaduais – nos dá elementos para iniciar a conversa. Em um ano, aumentamos os índices de violência em 5%. Em vidas, é bastante. O número de mortos de 2014 foi de 58.559 pessoas – sendo as causas homicídios dolosos, lesões corporais seguidas de morte, latrocínio e ações policiais. O cálculo beira o surreal – uma morte a cada nove minutos e índices alarmantes de 28 mortes a cada 100 mil habitantes.

   Vale fazer um recorte na estatística de latrocínio, mesmo não sendo a mais alarmante. Representa menos de 5% das mortes – um total de 2.061 vítimas, seguida de 773 feridos. O efeito de um latrocínio é cruel sobre o imaginário. A violência da rua passa à porta da sala. Na clássica oposição entre casa e rua explorada por Roberto DaMatta, enquanto a “rua” cabe ao Estado, a “casa” está sob nossa custódia. É ali que, nas nossas mais sinceras crenças, fazemos a nossa parte. Esse esforço é desprezado. Violar o espaço doméstico é praticamente permitido. Diz-se por aí que não há solução para esse tipo de infração e ao que acarreta. A dizer: cada furto e roubo é a possibilidade do homicídio e da lesão corporal. Ao saber que esse temor é desprezado pelo poder público, resta ao cidadão leiloar o que lhe sobrava de confiança nas forças de segurança.

   Eis o ponto. O mundo da segurança pública se rendeu à sociedade do espetáculo. Está empavonado demais para se ocupar de “miudezas”. Todos os esforços são no sentido de reprimir o crime organizado e de “manchetear” a ideia de um Estado corajoso e providente. É claro que essas ações são urgentes e necessárias, mas há um flagrante descuido com a violência às pessoas comuns. Pura burrice. Essas pessoas poderiam se tornar agentes cidadãos de segurança pública, caso se sentissem assistidas pelas polícias. Ao negligenciar a atmosfera de medo provocada pelo roubo e furto – e como esses delitos sugerem a possibilidade do latrocínio –, o poder público outra coisa não faz senão empurrar parte da população para os braços da informalidade das pequenas milícias e para a indústria de cercas elétricas, câmeras e afins.

   A população fica trancafiada, enquanto quem deveria ajudar a lidar com isso defende uma hierarquia na solução dos crimes, partindo da supremacia do crime organizado. Ora, difícil sustentar que não há um alto grau de profissionalização dos assaltos a carros e residências. São sofisticados, e não ladrões de ocasião. Olheiros, pequenas redes de informação, “sociedades anônimas” podem não precisar de helicópteros para que sejam reprimidos, mas sua dissolução é urgente. Só assim para neutralizar as raízes do medo. Há um mal que se infiltra pelas calçadas, com potencial de ser tanto mal quanto o tráfico. Tomara que o futuro não nos conte mais essa verdade.

     Fonte: Gazeta do Povo - PR (Editorial de 19/10/2015)

Comentários

Comente aqui este post!
Clique aqui!

 

Também recomendo

  •    Em termos de evolução, a espécie Homo sapiens é extremamente bem sucedida. As populações de outras espécies posicionadas semelhantes a nós na cadeia alimentar tendem a chegar, no máximo, na casa dos 20 milhões. Nós, pelo contrário, levamos apenas...   (continua)


  •    Segundo um dos diretores da NASA, um cientista planetário chamado Rich Terrile, nossa vida poderia ser em realidade parte de uma simulação de computador programada por um homem do futuro entediado. Não o nosso, em realidade seríamos os personagens controlados que estão...   (continua)


  •    Gioconda Gordon - Gazeta Mercantil
       O título do livro do sociólogo polonês Zigmunt Bauman é sugestivo e, sobretudo, apropriado para um sentimento que não se submete docilmente a definições. Professor emérito de sociologia nas Universidades de Varsóvia e de Leeds, na Inglaterra...   (continua)


  •    Investigador norte-americano criou mapa animado que sintetiza manifestações de todo o mundo ao longo de mais de três décadas. Calcanhar de Aquiles: só reúne protestos noticiados. O Brasil, um dos colossos da geografia mundial, é um dos países mais...   (continua)


  •    Os brasileiros, em geral, acham que o mundo todo presta, menos o Brasil. Realmente parece que é um vício falar mal do Brasil. Todo lugar tem seus pontos positivos e negativos, mas no exterior eles maximizam os positivos, enquanto no Brasil se maximizam os negativos.   (continua)


  •    José Datrino, nasceu na cidade de Cafelândia, São Paulo. Teve uma infância árdua trabalhando com a terra e com animais. Para ajudar a família, puxava carroça vendendo lenha nas proximidades. Desde cedo aprendeu a amar, respeitar e agradecer à natureza...   (continua)


  •    Existe coisa mais melancólica do que uma mesa de quatro pessoas, num restaurante, em que três estão dedilhando seus smartphones e uma está falando sozinha?   (continua)


  •    As redes sociais são a próxima fronteira das ciências sociais. Essa nova disciplina (ciências sociais aplicadas às redes sociais) já tem um nome: física social. O termo "física social" data do Iluminismo do século 18 e era um projeto de uma ciência do humano à semelhança da...   (continua)


Copyright 2011-2024
Todos os direitos reservados

Até o momento,  1 visitas.
Desenvolvimento: Criação de Sites em Brasília