Aguarde por gentileza.
Isso pode levar alguns minutos...

 

O rio da posse - Fernando Pessoa

Enviado por Gilberto Godoy
o-rio-da-posse---fernando-pessoa

    Trecho de "O livro do desassossego" - Bernardo Soares.

     Que somos todos diferentes, é um axioma da nossa naturalidade. Só nos parecemos de longe, na proporção, portanto, em que não somos nós. A vida é, por isso, para os indefinidos; só podem conviver os que nunca se definem, e são, um e outro, ninguéns. Cada um de nós é dois, e quando duas pessoas se encontram, se aproximam, se ligam, é raro que as quatro possam estar de acordo.

     O homem que sonha em cada homem que age, se tantas vezes se malquista com o homem que age, como não se malquistará com o homem que age e o homem que sonha no Outro.

     Somos forças porque somos vidas. Cada um de nós tende para si próprio com escala pelos outros. Se temos por nós mesmos o respeito de nos acharmos interessantes, (…) Toda a aproximação é um conflito. O outro é sempre o obstáculo para quem procura. Só quem não procura é feliz; porque só quem não busca encontra, visto que quem não procura já tem, e já ter, seja o que for, é ser feliz (como não pensar é a parte melhor, de ser rico).

     Olho para ti, dentro de mim, noiva suposta, e já nos desavimos antes de existires. O meu hábito de sonhar claro dá-me uma noção justa da realidade. Quem sonha demais precisa de dar realidade ao sonho. Quem dá realidade ao sonho tem que dar ao sonho o equilíbrio da realidade. Quem dá ao sonho o equilíbrio da realidade, sofre da realidade de sonhar tanto como da realidade da vida (e do irreal do sonho com o de sentir a vida irreal).

     Estou-te esperando, em devaneio, no nosso quarto com duas portas, e sonho-te vindo e no meu sonho entras até mim pela porta da direita; se, quando entras, entras pela porta da esquerda, há já uma diferença entre ti e o meu sonho. Toda a tragédia humana está neste pequeno exemplo de como aqueles com quem pensamos nunca são aqueles em quem pensamos.

     O amor perde identidade na diferença, o que é impossível já na lógica, quanto mais no mundo. O amor quer possuir, quer tornar seu o que tem de ficar fora para ele saber que só torna seu se não é. Amar é entregar-se. Quanto maior a entrega, maior o amor. Mas a entrega total entrega também a consciência do outro. O amor maior é por isso a morte, ou o esquecimento, ou a renúncia — os amores todos que são os absurdiandos do amor.

     No terraço antigo do palácio, alçado sobre o mar, meditaremos em silêncio a diferença entre nós. Eu era príncipe e tu princesa, no terraço à beira do mar. O nosso amor nascera do nosso encontro, como a beleza se criou do encontro da Lua com as águas.

     O amor quer a posse, mas não sabe o que é a posse. Se eu não sou meu, como serei teu, ou tu minha? Se não possuo o meu próprio ser, como possuirei um ser alheio? Se sou já diferente daquele de quem sou idêntico, como serei idêntico daquele de quem sou diferente.

     O amor é um misticismo que quer praticar-se, uma impossibilidade que só é sonhada como devendo ser realizada.

     Metafísico. Mas toda a vida é uma metafísica às escuras, com um rumor de deuses e o desconhecimento da rota como única via.

     A pior astúcia comigo da minha decadência é o meu amor à saúde e à claridade. Achei sempre que um corpo belo e o ritmo feliz de um andar jovem tinham mais competência no mundo que todos os sonhos que há em mim. E com uma alegria da velhice pelo espírito que sigo às vezes — sem inveja nem desejo — os pares casuais que a tarde junta e caminham braço com braço para a consciência inconsciente da juventude. Gozo-os como gozo uma verdade, sem que pense se me diz ou não respeito. Se os comparo a mim, continuo gozando-os, mas como quem goza uma verdade que o fere, juntando à dor da ferida a consciência de ter compreendido os deuses.

     Sou o contrário dos espiritualistas simbolistas, para quem todo o ser, e todo o acontecimento, é a sombra de uma realidade de que é a sombra apenas. Cada coisa, para mim, é, em vez de um ponto de chegada, um ponto de partida. Para o ocultista tudo acaba em tudo; tudo começa em tudo para mim.

     Procedo, como eles, por analogia e sugestão, mas o jardim pequeno que lhes sugere a ordem e a beleza da alma, a mim não lembra mais que o jardim maior onde possa ser, longe dos homens, feliz a vida que o não pode ser. Cada coisa sugere-me não a realidade de que é a sombra, mas a realidade para que é o caminho.

     O jardim da Estrela, à tarde, é para mim a sugestão de um parque antigo, nos séculos antes do descontentamento da alma.

Comentários

  • por: Ana Paula em segunda-feira, 4 de outubro de 2021
    Com a simples leitura desse texto já fica claro como tentar definir o amor já é uma causa de "desassossego" ... rsrs!

Também recomendo

  •      "Dois homens , ambos gravemente doentes , estavam no mesmo quarto de hospital. Um deles podia sentar-se na sua cama durante uma hora todas as tardes para conseguir drenar o líquido de seus pulmões. Sua cama estava junto da única janela do quarto.   (continua)


  •    Dorival Caymmi é que cantava: "Mas como o acaso é importante, querida, de nossas vidas a vida fez um brinquedo também"... Esses versos vieram-me à cabeça, por acaso, porque estava lendo um livro que comprei, não por acaso. É que o autor falava de uma série de descobertas feitas na ciência, muitas por acaso.   (continua)


  •    "O meu sonho na vida era ter o poder de ser um vídeo cassete de mim mesmo; ter o controle remoto que me permitisse renascer experiências vividas. Eu poderia voltar o tempo, acelerar pular cenas dos próximos capítulos, parar imagens no momento que me tivesse sido glorioso, vivê-lo outra vez, talvez eternizar o orgasmo.   (continua)


  •    Fui convidado a fazer uma preleção sobre saúde mental. Os que me convidaram supuseram que eu, na qualidade de psicanalista, deveria ser um especialista no assunto. E eu também pensei. Tanto que aceitei. Mas foi só parar para pensar para me arrepender. Percebi que nada sabia. Eu me explico. Comecei o meu pensamento fazendo uma lista das pessoas que...   (continua)


  •    “Antes do teólogo, havia um contador de histórias.” - Ray anderson
      Certa vez um homem muito rico, de natureza boa e generosa, queria que o seu escravo fosse feliz. Para isso lhe deu a liberdade e um navio carregado de mercadorias.   - Agora você está livre – disse o homem. – Vá e venda esses produtos em diversos países e tudo o que conseguir por eles será seu.   (continua)


  •      Se eu tivesse que escolher uma palavra – apenas uma – para ser item obrigatório no vocabulário da mulher de hoje, essa palavra seria um verbo de quatro sílabas: descomplicar. Depois de infinitas (e imensas) conquistas, acho que está passando da hora de aprendermos a viver com mais leveza: exigir menos dos outros e de nós próprias, cobrar menos, reclamar menos, carregar menos culpa, olhar menos para o espelho.   (continuar)


  •    Agora, que chegaste à idade avançada de 15 anos, Maria da Graça, eu te dou este livro: Alice no País das Maravilhas. Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti. Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca. Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas.   (continua)


  • “Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui
    para frente do que já vivi até agora. Sinto-me como aquela menina que
    ganhou uma bacia de jabuticabas. As primeiras, ela chupou displicente,
    mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço.
    Já não tenho tempo para lidar com mediocridades....
    (continua)


Copyright 2011-2024
Todos os direitos reservados

Até o momento,  1 visitas.
Desenvolvimento: Criação de Sites em Brasília