Aguarde por gentileza.
Isso pode levar alguns minutos...

 

A arte de ficar à toa

Enviado por Gilberto Godoy
a-arte-de-ficar-a-toa
Texto bom para ler num domingo tranquilo em casa. 

Sérgio Augusto - O Estado de S.Paulo

Por que o prazer da lentidão desapareceu?, pergunta-se Milan Kundera na abertura de sua primeira narrativa escrita diretamente em francês, et pour cause intitulada A Lentidão, que a Companhia das Letras acaba de reeditar. Perdeu-se o hábito de curtir a lentidão neste mundo cada vez mais movido pela pressa e pelo pragmatismo, lamenta o escritor checo, saudoso dos flâneurs de antanho, dos "heróis preguiçosos das canções populares" e dos "românticos vagabundos que dormiam sob as estrelas", criaturas da ociosidade quando esta ainda não era vista, única e exclusivamente, como sinônimo de desocupação estéril e parasitária.

 Peguei para ler o livrinho de Kundera no embalo de um ciclo de palestras sobre o mais potente combustível da ociosidade: a preguiça. Magnífico tema, na contramão das rotineiras sociologorreias sobre o seu oposto, o trabalho, e também do falso bom senso moral, econômico e religioso que a condenaram como mero vício, ofensa a Deus e entrave ao progresso, pois todos os 23 palestrantes não irão apenas indultar a preguiça (do latim pigritia, cuja raiz é piger, lento), mas sobretudo exaltá-la, valorizando a figura dos ociosos espiritualmente produtivos. Ficar à toa é uma arte. O ciclo, que começa no próximo dia 11, faz parte da série Mutações, criada e orientada pelo professor Adauto Novaes.

São os ociosos que transformam o mundo, escreveu Camus, "porque os outros não têm tempo algum". Nem sequer para perceber as contradições e as consequências físicas e psíquicas da faina incessante e refletir sobre elas, lenta e profundamente. Os ociosos transformam o mundo criando e meditando. Usar a inteligência sem finalidade lucrativa, não submeter o ócio ao negócio, retirar-se da pressa e das agitações mundanas para poder refletir melhor, este é o trabalho dos ociosos, permanente e sem fim. "A primeira prova de uma inteligência ordenada", prescreveu Sêneca, "é poder parar e aquietar-se consigo mesmo", entregar-se, na formulação de Montaigne, ao "fecundo exercício de uma ociosidade inteligente e feliz", como ele, Sêneca e tantos outros (Rousseau, Thoreau) fizeram.

Além de Macunaíma, a palavra preguiça sempre me evoca o pernambucano Ascenso Ferreira ("Na hora de dormir, dormir; na hora de comer, comer; na hora de vadiar, vadiar; na hora de trabalhar, pernas pro ar que ninguém é de ferro"), o gaúcho Mario Quintana (que fez da pachorra um "método de trabalho"), a modinha De Papo Pro Ar, e, em outro plano, Paul Lafargue, Bertrand Russell e aquele mimético episódio de Godard em Os Sete Pecados Capitais, com Eddie Constantine com preguiça de até dar laço no sapato. E, de uns tempos para cá, a revista The Idler (O ocioso), editada por Tom Hodgkinson, que, confesso, não leio por pura preguiça.

Lafargue, genro de Marx, escreveu há 123 anos a mais conhecida defesa do far-niente, O Direito à Preguiça, que é sobretudo uma crítica arrasadora à "perversão" das classes operárias pelo "dogma do trabalho" complotado pela Igreja e a nobreza - e legitimado pela lógica da produção capitalista e pela retórica domesticante do comunismo. Os antigos gregos desprezavam o trabalho (atribuição exclusiva dos escravos) e gastavam seu tempo com exercícios físicos, jogos de inteligência e o que chamavam de ataraxia: a vida contemplativa. A escravidão, ao estilo antigo, acabou, mas ressurgiu com novas feições. "Quem não tem dois terços do dia para si é escravo, não importa o que seja: estadista, comerciante, funcionário ou erudito." Assim falou Nietzsche, que só foi escravo de sua loucura.

Platão e Aristóteles achavam que trabalhar esgota o físico, faz mal à saúde, degrada a alma e impede o homem de servir ao espírito, ao corpo e à polis. A moral cristã estragou tudo, santificando o batente ("ganharás o pão com o suor do seu rosto") e transformando a preguiça em pecado capital. Embora Jesus tenha louvado o ócio, no sermão da montanha ("olhai os lírios no campo", etc.), e o Todo-poderoso parado para descansar no sétimo dia, e por toda a eternidade, a Igreja, ressalta Lafargue, pregou, astuciosamente, a ideia de que trabalhar é um castigo imposto pela justiça divina a Adão e Eva e sua infinita prole, para que não lhes sobrasse tempo livre para pensar em besteiras, como, por exemplo, questionar o clichê de que o trabalho só enobrece o homem.

Os nazistas pegaram carona nessa pregação, afixando à entrada de seus campos de extermínio este cínico bordão "Arbeit Macht Frei" (O trabalho liberta). Tão logo o Reich se estrepou, um sambista carioca chamado Almeidinha usou seu ócio para compor um dos maiores sucessos do carnaval de 1946, mais que um samba, um desabafo contra a ergolatria imposta pelo recém-derrubado Estado Novo: "Trabalhar, eu não, eu não!".

Russell fez seu "elogio ao lazer" (ou ao ócio) na mesma sintonia de Camus ("sem a classe ociosa, a humanidade jamais teria saído da barbárie") e Lafargue (para manter os pobres satisfeitos, os ricos enalteceram, por milhares de anos, a dignidade do trabalho, "embora pouco se importando de continuar indignos nesse sentido"), e defendeu a redução da jornada de trabalho para quatro horas, mas sem recomendar que o tempo restante fosse desperdiçado com "pura frivolidade". Trabalhando menos e aproveitando melhor o tempo, teríamos uma vida menos monótona e estressante, seríamos mais alegres e felizes. Como se ainda (ou já) estivéssemos no Paraíso.

Comentários

Comente aqui este post!
Clique aqui!

 

Também recomendo

  • “Somos, fluindo de forma em forma docilmente, movidos pela sede do ser atravessamos o tempo. O dia, a noite, a gruta e a catedral. Assim sem descanso as enchemos uma a uma, e nenhuma nos é o lar, a ventura, a tormenta. Ora caminhamos sempre, ora somos sempre o visitante, 
A nós não chama o campo, o arado, a nós não cresce o pão...   (continua)


  •    Que o seu Natal seja verdadeiro, caloroso, espontâneo e essencial. Será Natal o que se fizer sincero e gratificante; onde o sorriso agradeça, revele ou transcenda. Há de ser Natal quando possamos festejar por igual e saibamos avaliar perdas, dores, erros e comungar qualidades, feitos, capacidade de prosseguir na luta constante por ver, sentir, saber e...   (continua)


  •    Olho com ternura para o meu chapéu de veludo verde. Ele já teve belas flores de camurça cor de ferrugem num dos lados das abas e, com certeza, dias de maior esplendor e glória quando o comprei numa sofisticada loja em Washington D.C.  Naquele tempo eu tinha 22 anos e fazia minha primeira...   (continua)

  •    Pedro Paulo Pereira Pinto, pequeno pintor português, pintava portas, paredes, portais. Porém, pediu para parar porque preferiu pintar panfletos. Partindo para Piracicaba, pintou prateleiras para poder progredir. Posteriormente, partiu para Pirapora. Pernoitando, prosseguiu para Paranavaí, pois pretendia praticar pinturas para pessoas pobres. Porém...   (continua)


  •    Quando encontrar alguém e esse alguém fizer seu coração parar de funcionar por alguns segundos, preste atenção: pode ser a pessoa mais importante da sua vida. Se os olhares se cruzarem e, neste momento, houver o mesmo brilho intenso entre eles, fique...   (continua)


  •    O que eu tenho não me pertence, embora faça parte de mim. Tudo o que sou me foi um dia emprestado pelo Criador para que eu possa dividir com aqueles que entram na minha vida.  Ninguém cruza nosso caminho por acaso e nós não entramos na vida de alguém sem nenhuma razão. Há muito o que...   (continua)


  •    "Lembrar que estarei morto em breve é a ferramenta mais importante que já encontrei para me ajudar a tomar grandes decisões. Porque quase tudo - expectativas externas, orgulho, medo de passar vergonha ou falhar - caem diante da morte, deixando apenas o que é apenas importante. Não há razão para não seguir o seu coração. Lembrar que..."   (continua)


  •    A noite chegou, o trabalho acabou, é hora de voltar para casa. Lar, doce lar? Mas a casa está escura, a televisão apagada e tudo é silêncio. Ninguém para abrir a porta, ninguém à espera. Você está só. Vem a tristeza da solidão… O que mais você deseja é não estar em solidão…   (continua)


Copyright 2011-2024
Todos os direitos reservados

Até o momento,  1 visitas.
Desenvolvimento: Criação de Sites em Brasília