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A fantasia e o 11 de setembro

Enviado por Gilberto Godoy
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     Jonathan Schell - Opera Mundi, publicado originalmente no The Nation

     Os ataques de 11 de setembro foram muitas coisas. Entre as mais importantes, podemos ver depois de uma década, é que eles foram um portal para um mundo de fantasmas, no qual os Estados Unidos têm vagado desde então.

     O grande crime sinalizou de maneira estranha essa tendência, unindo o real ao irreal, o verdadeiro ao questionável. Ao usar aviões cheios de passageiros para jogar contra prédios gigantes lotados de trabalhadores, ele foi criado para gerar um espetáculo sangrento, dar vida a um horror digno de filmes. As torres do World Trade Center e o Pentágono foram claramente escolhidos por seu valor simbólico. E então, em uma mudança de rumo, não prevista nem mesmo pelos planejadores do ataque (ficamos tentados a dizer “produtores do ataque”), as consequências se expandiram também para o reino da fantasia quando não apenas uma, mas as duas torres desabaram, como se deuses malignos tivessem se aliado, naquele momento, aos malfeitores.

     Os EUA, como se pegassem a deixa de Osama bin Laden, combinou sua reação com o simbolismo apocalíptico e não com a genuína, mas limitada, realidade da ameaça da Al Qaeda. Eles aceitaram o exagero da importância de bin Laden, encenada pelo líder dos terroristas com brilhantismo. Logo, a política estrangeira e a política interna dos EUA giravam como um pião em torno da Al Qaeda e da ameaça que ela supostamente representava. A Al Qaeda foi associada (de maneira absurda) à União Soviética durante a Guerra Fria e a Hitler na Segunda Guerra Mundial, e tratada da mesma maneira que eles. O “exagero das ameaças” tem uma longa história na política dos EUA, desde a crise dos mísseis nos anos 1950 à Guerra do Vietnã, mas nunca havia recebido tanta indulgência.
 
     Naquele momento, forças imensas e reais estavam na jogada, uma vez que o poder dos EUA era verdadeiro e enorme, e a reação do país foi global, no alcance e nas consequências. Ao dirigir-se ao congresso nove dias depois do ataque, George W. Bush expandiu a “guerra contra o terror” aos estados, declarando: “a partir deste dia, qualquer nação que continue a abrigar ou apoiar o terrorismo será vista pelos EUA como um regime hostil”. A política de “mudança de regime” nasceu e as guerras no Afeganistão e no Iraque foram lançadas em nome dela. E houve mais. Em um discurso alguns meses depois, Bush anunciou: “os EUA têm, e querem manter, forças militares incomparáveis, tornando, assim, inúteis as instáveis corridas armamentícias de outras eras e limitando as rivalidades ao comércio e outras buscas pela paz”. Em outras palavras, ele não alegou nada menos do que um monopólio americano no uso efetivo da força no mundo. O famoso documento de políticas da Casa Branca de setembro de 2002, “Estratégia nacional de segurança dos Estados Unidos da América”, exaltou os idéias americanos de “liberdade, democracia e empreendimento livre” como o “único modelo sustentável para o sucesso nacional”. Políticos e especialistas abraçaram explicitamente uma vocação imperial global para os EUA.

     Ainda assim, logo depois de a hegemonia imperial global do país ter sido proclamada, ela começou a se desintegrar. As duas guerras de “mudança de regime”, imaginadas como alertas para outros governos que pensassem em cruzar o caminho dos EUA, rapidamente se transformaram nos estudos de futilidade sangrenta que ainda são depois de uma década, sem um fim claro em vista para as duas. Nenhuma sequência era possível, militar ou política. A pseudo-ameaça havia gerado um pseudo-império, que começou seu declínio logo depois de ser lançado. O recém-proclamado império americano ascendeu e caiu no mesmo movimento. O preço do sofrimento para aqueles que foram pegos nessa onda – seja no Afeganistão, no Iraque ou outro lugar – foi incomparavelmente mais alto do que para os EUA.

     Em uma nova forma de jiu-jitsu, os EUA, incentivados (mas não forçados) pelo 11 de setembro, viraram seu poder contra si mesmos. No jiu-jitsu normal, o lutador usa a força do adversário para derrubá-lo. Na versão americana da arte marcial, ele usa a sua força para se derrubar. Hoje em dia, as pessoas falam de guerra assimétrica, ou seja, do combate entre poderes desiguais. Nesse caso, foi o extremo da assimetria. A disparidade de poder foi tão grande que o punho da parte mais forte, ao não encontrar o adversário esperado, fez um giro completo e acertou seu próprio nariz.

     Enquanto isso, o hábito de exagerar ou inventar ameaças de alguma forma persistia e se espalhava. Uma nova prontidão para criar ilusões e dar crédito a elas infectou a vida pública, em intensidades maiores ou menores e em áreas bem distantes dos ataques tanto quanto naquelas ligadas a eles. A lista de alucinações e absurdos que tiveram papel ativo na vida política – da bastante difundida crença de que o atual presidente seria estrangeiro e mulçumano ao medo de que as leis da Charia estejam a postos para dominar a jurisprudência americana – aumenta de maneira constante.

     Muitas dessas alucinações têm um papel em um comportamento perverso, aparentemente encontrado desde a Guerra do Iraque, que se estabeleceu nas decisões políticas. Consiste em alegar, com falsidade, a existência de algum problema para o qual a sua solução é algo que você queria fazer de qualquer forma, por outro motivo que você prefere não divulgar. A falsa alegação no caso do Iraque foi, é claro, que existiam armas de destruição em massa no país. O que a administração de Bush queria fazer de qualquer jeito era atacar o Iraque. O motivo para isso era demonstrar que os EUA estavam prontos para usarem a força na busca das suas recém-anunciadas ambições de hegemonia global. Declaradas com honestidade, essas ambições provavelmente não seriam bem aceitas. Dizer que estavam evitando um ataque nuclear aos EUA era mais convincente.

     Agora, esse comportamento já havia apareceu no centro da política econômica, no debate sobre o déficit no orçamento. A falsa alegação foi de que o déficit representava um perigo urgente para o crescimento econômico, por exemplo, com uma ameaça às taxas de juros (na verdade, elas permaneceram muito baixas à medida que o déficit aumentou). O que os grupos da direita queriam fazer de qualquer forma era cortar os gastos do governo com programas que beneficiavam as pessoas comuns e os pobres. Os motivos para quererem fazer isso podem ser debatidos, mas eles incluem cortes em programas, como os de previdência social e ajuda médica, que estão entre as bases do apoio popular ao partido democrata.

     Podemos ver esse padrão novamente na questão das restrições aos votos, agora em discussão em estados de todo o país. O partido republicano e os grupos de direita têm alegado uma epidemia de fraudes de eleitores, à qual têm reagido com uma campanha para questionar eleitores quanto à sua honestidade em locais de votação e a criação de legislações exigindo requisitos onerosos para votar, como a apresentação de identificações oficiais. A falsa alegação aqui foi a onda de fraude nos votos. Um estudo do Brennan Center for Justice, da New York University, mostrou que a fraude é de insignificante a inexistente. O que os grupos da direita queriam fazer de qualquer forma era restringir a votação entre eleitores com inclinações para o partido democrata, como pobres e estudantes, que têm menos probabilidade de corresponder aos novos requisitos. O motivo para isso era chegarem ao poder e permanecerem lá.

     A estratégia dos provocadores de criar uma ameaça para reagir a ela é bem conhecida, mas não havia tido um papel de grande importância na política americana como tem desde o 11 de setembro.

     Outro preço foi alegado, talvez o mais alto, apesar de ser o mais difícil de medir. Enquanto os EUA estão se desgastando na tentativa de encontrar soluções para problemas irreais, os problemas reais que estão diante deles não são tratados. A nação que foi absorvida em guerras fadadas ao fracasso deixou de notar a crise financeira que a envolveu e dominou em 2008. A nação que esteve ocupada com a ascensão de seu império destinado ao declínio não teve atenção ou energia sobrando para aquela ameaça real a si mesma e a todas as espécies, o aquecimento global. Cresce a suspeita de que nossos atos de autodestruição desde o 11 de setembro foram, em um nível mais básico, atos de distração, que criaram demônios imaginários precisamente para nos poupar de encarar os fardos reais do nosso tempo.

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