A generosidade de uma criança - Carlos Vieira
Assisti a uma reportagem no programa Fantástico, da TV Globo, que além de ter me emocionado bastante, mostrou uma experiência insólita, rara e belíssima.
Um garoto de oito anos, de uma cidade dos Estados Unidos, ganhou um prêmio em sua escola, de mil dólares. Poderia ter aproveitado para realizar vários desejos de um infante, principalmente numa sociedade consumista e por demais materialista. Qual surpresa, essa criança doou, generosamente, seu dinheiro para outra criança, de dois anos, necessitada de fazer quimioterapia em virtude de uma leucemia. Esse é o fato!
O ser humano, em sua essência constitucional, vem ao mundo dotado da capacidade de amar tanto quanto de odiar. Somos animais e somos humanos em nossa tessitura instintual e psíquica. Alguns mais afetivos outros mais agressivos constitucionalmente.
O que quero nesse momento salientar é o sentimento de generosidade. Generosidade é amor incondicional; é um ato de estar disponível para albergar a dor do outro, sem “segundas intenções”; é tolerância de poder retirar de si para benefício de outra pessoa. É o amor de mãe cantado em prosa e verso e daqueles que tem dentro de si, a função materna.
Essa criança provavelmente tem dentro dela, introjetado e assimilado, a capacidade amorosa por excelência. Essa criança, ainda que juvenil, capta, sente e percebe a importância de fazer alguma coisa para suportar a “nossa mortalidade”. Ela sabe da morte, da angústia terrível que alguém sente, se condenada tão cedo por uma doença que pode ser letal.
Sofrimento maior para todos nós é saber, que essa generosidade parece estar ficando rara. Vivemos num mundo egoísta, narcísico, direcionado para o prazer de Ter, ter mais do que se tem, inclusive solapando e assaltando os que necessitam e sofrem por não terem as mínimas condições de sobrevivência.
O garoto dá o exemplo de um amor social, gregário, comunitário, para beneficiar alguém que pode deixar de existir a qualquer momento. Esse menino provavelmente vem de um lar com predominância de afeto; de pais que puderam transmitir a solidariedade humana.
Penso agora nos milhões de recém nascidos e crianças, enumerados nas estatísticas de mortalidade infantil, nesse Brasil emergente com pretensões de primeiro mundo. É fato que os índices de mortalidade infantil têm caído, mas muita coisa ainda precisa ser feita.
Penso na generosidade do Governo, na capacidade de dar dos nossos políticos (?). Penso nas verbas destinadas às populações carentes. Essas verbas, fruto dos impostos altíssimos que pagamos, muitas vezes chegam nas prefeituras nem sempre o valor pré-estipulado. No caminho que compreende entre o orçamento e a chegada à sua finalidade social, quantos e quantos milhões ficam nos bolsos dos “assaltantes”, daqueles que desconhecem e que são incapazes de ter e sentir a expressão afetiva da generosidade! Em vários lugares desse Brasil sempre existe a dor da solidão de uma criança agonizante, sem ter o que comer e onde morar. Em vários lares falta o sentimento de amorosidade, meio pelo qual se desenvolve a generosidade.
No morro, nas favelas, nos sertões e no seio das famílias, ditas de classe dominante, a generosidade existe? Uma boa parte dos menos privilegiados torna-se odientos, invejosos, feridos na carência, revoltados e ressentidos por não terem tido um “lugar ao sol”. Ainda assim, alguns são amorosos, generosos e socialmente preocupados com os seus semelhantes.
Os filhos de uma parcela pequena da população, a classe alta dominante, encontram na intimidade dos seus lares a predominância da amorosidade e da generosidade? Ou observam às vezes com prazer e triunfo, outras vezes com tristeza, como seus pais adquirem riqueza às custa de corrupção, suborno, falcatruas, gangues de colarinho branco em conluio com o Poder Estatal? Desses lares não saem atos de generosidade e de gratidão! Dessas famílias emergem jovens depressivos, vazios, frios, calculistas, escondendo dentro de si a “cultura do desafeto e do vazio existencial.”
Logo após ter sido tocado com a notícia dada pelo Fantástico, antes de dormir fui ler um pouco. Por coincidência ou não, senti mais uma vez a “dor da falta” num lindo poema de Cecília Meireles:
Orfandade
“A menina de preto ficou morando atrás do tempo,
Sentada no banco, debaixo da árvore,
Recebendo todo o céu nos grandes olhos admirados.
Alguém passou de manso, com grandes nuvens no vestido,
E parou diante dela, e ela, sem que ninguém falasse,
Murmurou: “A MAMÃE MORREU”.
Já ninguém passa mais, e ela não fala mais, também.
O olhar caiu dos seus olhos, e está no chão, com as outras pedras,
Escutando na terra aquele dia que não dorme,
Com as três palavras que ficaram por ali”
Poema do livro - VIAGEM, Ed. Global, SP. 2012.
Carlos.A.Vieira, médico, psicanalista, Membro Efetivo da Sociedade de Psicanálise de Brasilia e de Recife. Post via blog do Moreno.