Aguarde por gentileza.
Isso pode levar alguns minutos...

 

A ignorância - Milan Kundera

Enviado por Gilberto Godoy
a-ignorancia---milan-kundera

     Durante os vinte anos da sua ausência, os habitantes de Ítaca conservaram muitas recordações de Ulisses mas não sentiam por ele qualquer nostalgia. Enquanto Ulisses sofria de nostalgia e não se recordava de quase nada.

     Pode compreender-se esta curiosa contradição se considerar que a memória, para poder funcionar bem, precisa de um treino incessante: se as recordações não são evocadas, uma vez mais e outra vez ainda, nas conversas entre amigos, vão-se embora.

     Os emigrados agrupados em colónias de compatriotas contam uns aos outros até à náusea as mesmas histórias que, assim, se tornam inesquecíveis. Mas os que não frequentam os seus compatriotas, como Irena ou Ulisses, são inevitávelmente feridos de amnésia. Quanto mais forte é a sua nostalgia, mais se esvazia de recordações. Quanto mais Ulisses enlanguescia, mais esquecia. Porque a noltalgia não intensifica a actividade da memória, não desperta recordações, basta-se a si própria,à sua própria emoção, absorta por completo como está no seu próprio sofrimento.(…)

     E, convencidos de que nada a não ser a sua Ítaca lhe interessava (como teriam podido não o pensar se ele percorrera a imensidão dos mares para regressar ali?)seringavam-lhe o que se passara durante a sua ausência, ávidos de responderem a todas as suas perguntas. Nada o aborrecia mais que isso. Só esperava uma coisa; que lhe dissessem enfim:conta! E foi a única palavra que nunca lhe disseram.

     Durante vinte anos só pensara no seu regresso. Mas uma vez de volta compreendeu, espantado,que a sua vida, a própria essência da vida, o seu centro, o seu tesouro,perdera-o e só poderia reeencontrá-lo contando.
Depois de ter deixado Calipso, durante a sua viagem de regresso naufragara na Feácia, onde o rei o recebera na sua corte. Aí era um estrangeiro, um desconhecido misterioso.

     A um desconhecido pergunta-se: "Quem és tu? De onde vens? Conta! E ele contara. Durante oito longos cantos da Odisseia reconstruíra com minúcia as suas aventuras diante os Feáciosassombrados. Mas em Ítaca não era um estrangeiro, era um deles e era por isso que ninguém pensva em dizer: "Conta!"
 

Comentários

Comente aqui este post!
Clique aqui!

 

Também recomendo

  •    Étienne de La Boétie morreu aos 33 anos de idade, em 1563. Deixou sonetos, traduções de Xenofonte e Plutarco e o Discurso Sobre a Servidão Voluntária, o primeiro e um dos mais vibrantes hinos à liberdade dentre os que já se escreveram.  Toda a sua obra ficou como legado ao filósofo Montaigne (1533 – 1592), seu amigo pessoal que... (continua)


  •    É duro aceitar que algumas pessoas são mais capazes e mais afortunadas do que outras. Há muito suspeitava que um dia as mulheres mais bonitas iam ser de alguma forma castigadas por nossa sociedade. Meu temor, em parte, se confirmou. Incluindo aí também um castigo para os homens mais bonitos. E por quê?   (continua)


  •    Hoje voltou o frio. Veio como havia muito não vinha. Gelou o ar, esfriou o sofá da sala, resgatou meias, casacos e dores do fundo de uma gaveta que emperra como não quisesse abrir. Chegou sabe-se lá de onde, do pacífico, dos polos congelados, do sul do país. Não importa. Aqui faz frio. Em seu sopro fresco e úmido, esse frio há de aquecer os ímpetos de alguém.   (continua)


  •    Existe no português uma palavra chamada solitude, que diferente de solidão é uma solidão voluntária, escolhida, desejada. Nós não somos muito acostumados a ligar vontade com solidão, por isso a palavra solitude é pouco usada. É meio óbvio pensar que as sociedades antigas só podiam dar nomes àquilo que elas viam ou que existia, pois é...   (continua)


  •    O professor de História, no seu primeiro dia de aula, entra e os alunos nem percebem, conversando, falando ou jogando no celular. Ele escreve na velha lousa um imenso H, e depois vai desenhando cabeças com bigodes e barbas, enxada, foice. A turma foi prestando atenção, trocando risinhos, e agora espera curiosa.    (Continua)


  •    Uma boa reflexão sobre o que podemos ser. 
      "Era uma vez um camponês que foi à floresta vizinha apanhar um pássaro para mantê-lo cativo em sua casa. Conseguiu pegar um filhote de águia. Colocou-o no galinheiro junto com as galinhas. Comia milho e ração própria para galinhas. Depois de cinco anos, este homem recebeu em sua casa a visita de um naturalista...   (continua)


  •    “Se por um instante Deus se esquecesse de que sou uma marioneta de trapos e me presenteasse com mais um pedaço de vida, eu aproveitaria esse tempo o mais que pudesse... Possivelmente não diria tudo o que penso, mas definitivamente pensaria tudo o que digo. Daria valor às coisas, não por aquilo que valem, mas pelo que significam.   (continua)


  •    "O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenou a alma dos homens... levantou no mundo as muralhas do ódios... e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria.   (continua)


Copyright 2011-2024
Todos os direitos reservados

Até o momento,  1 visitas.
Desenvolvimento: Criação de Sites em Brasília