Aguarde por gentileza.
Isso pode levar alguns minutos...

 

O enorme presente - Arnaldo Jabor

Enviado por Gilberto Godoy
o-enorme-presente---arnaldo-jabor

    Pensadores, artistas, intelectuais vivem perplexos diante das mudanças nas contingências sociais vigentes. Este texto do Jabor expõe muito bem esta angústia de alguns de nós. Vale a pena ser lido.

     'Um amigo meu, cultíssimo, tem um filho muito “conectado” na internet. E o menino disse a ele: “Pai, você sabe tudo que já aconteceu, mas não sabe nada que está acontecendo”. O pai, como todos nós, embatucou. A mutação cultural dos últimos anos foi tão forte, a turbulência no mundo pós-industrial dissolveu tantas certezas, que caímos num vácuo de rotas.

     Artistas e pensadores vivem perplexos — não sabem o que filmar, escrever, formular. Sinto em mim mesmo como é difícil criar sem esperança ou finalidade. Como era gostoso nosso modernismo, os cinemas novos, os movimentos literários, as cozinhas ideológicas. Os criadores se sentiam demiurgos falando para muitos. Sei que, neste exato momento, jovens filhos da web, os “hackers” da arte devem estar rindo de mim. Por isso, lembro a frase de Drummond: “Cansei de ser moderno, quero ser eterno...” (“frase manjada”, dirão meus inimigos...); tudo bem, mas sinto muita falta do tempo em que alguma “síntese”, mesmo ilusória, nos era oferecida. Aí, a “contemporaneidade”, esse “faz-tudo” do novo vocabulário, inventou a “utopia da distopia”. Nada como uma boa distopia para saciar nossa fome de certezas. Vá em qualquer exposição de arte e veja o “conceito” ou a “narrativa” (outras palavras de mil utilidades) das obras: “o futuro vai ser uma bosta”. E os artistas vibram de orgulho, radiantes como profetas do nada. A fruição poética é impedida, como se o prazer fosse uma coisa reacionária, “alienada”, nos levando a ignorar o “mal do mundo”. Há uma encruzilhada de linguagens, uma mutação no pensamento.

     As palavras que eram nosso muro de arrimo foram esvaziadas e ficamos à deriva. Por exemplo, “futuro”. Que quer dizer? Antes, era visto como um lugar a que chegaríamos. Agora, no lugar de “futuro”, temos um presente incessante, sem ponto de chegada. Pela influência do avanço tecnológico da informação e pelo mercado global, foram se afastando do grande público as criações artísticas e literárias, as ideias filosóficas, os valores. “Toda aquela dimensão espiritual chamada antigamente de cultura que, ainda que confinada nas elites, transbordava sobre o conjunto da sociedade e nela influía, dando uma razão de ser para a existência” — escreveu Vargas Llosa. Passamos a viver diante de telas — ou TV ou games que nos matam a fome de sentido. Surgiu uma “segunda vida” digital e audiovisual que nos afasta do antigo vazio da realidade misteriosa. Nas telas, nos games nossa existência se explica; é só seguir as regras do jogo. Agora, na falta das “grandes narrativas” do passado, estamos a idealizar irrelevâncias, porque ali pode haver pistas para novas “verdades” a desvelar.

     Nunca tivemos tantos criadores, tanta produção cultural enchendo nossos olhos e ouvidos com uma euforia medíocre, mas autêntica. A aura deslizou da obra para o próprio autor. Há uma grande vitalidade neste cafajestismo poético, enchendo a “web” de grafites delirantes. Não sei em que isso vai dar, mas o tal “futuro” chegou. Talvez este excesso de “irrelevâncias” esteja produzindo um acervo de conceitos “relevantes”, ainda despercebidos. Podemos nos arriscar ao erro com mais alegria; mas, isso não pode justificar um desprezo pela excelência. As tentativas de “grande arte” são vistas com desconfiança, como atitudes conservadoras, diante da cachoeira de produções que navegam no ar. Isso me lembra o tempo em que achávamos que o “fluxo da consciência”, “the stream of consciousness”, ou o discurso psicótico continham uma sabedoria insuspeitada.

     Hoje há uma espécie de presente eterno, que esqueceu o passado ou as influências dele. Como se crianças nascessem por geração espontânea, sem pai nem mãe. Uma psicanalista me disse que estão todos desesperados na profissão, porque os pacientes não têm mais interioridade. Não têm sobre o que refletir. A psicanálise está diante de um tipo de subjetividade inesperada. Nas artes, o mesmo. Na literatura nova atual, sente-se que a busca não é só de um tema ou assunto, mas que a preocupação maior é “como” escrever. Como ser “contemporâneo”? Como buscar um sentido para a falta de sentido? A própria superficialidade ou talvez a vulgaridade, a irrelevância sejam relevantes — acham. A irrelevância é buscada. Temos de ter um “não enredo”, um “não final” , uma “não explicação” buscada. A utopia da distopia. Há livros cultuados na literatura contemporânea que são absolutamente insuportáveis, mas que são vendidos (e lidos?) para milhões que acham aquilo arte “da hora”. É o difícil superficial, o óbvio disfarçado de profundo.

     Aliás, a própria crítica está intimidada, porque “julgar” algo pode denotar que o sujeito que ousou fazê-lo teria opiniões conservadoras, que ele seria um crítico “estraga prazer”, um intrometido. Será que houve a morte da “importância”? Ou ela seria justamente esta explosão de conteúdos e autores? O “importante” seria agora o quantitativo? Não sei; mas, se tudo é “importante”, nada o é. A importância de uma obra reside no grau de decifração da vida de seu tempo e para onde ela aponta, mesmo no túnel sem luz. Se olharmos as obras primas de, digamos, Jan Van Eyck, o gênio holandês, vemos ali todo o espírito da Idade Média, revelada nos detalhes mais banais, mesmo nas encomendas de príncipes ou cardeais.

     Contudo, é preciso que esses tópicos sejam discutidos, pois na tal conversa do pai erudito com o filho conectado, a resposta do pai poderia ser: “Você acha que sabe tudo que está acontecendo e nada sabe sobre o que já aconteceu”.

     Por isso, dou uma pequena contribuição ao assunto: tenho um filho de 13 anos. Eu, zeloso pai, botei o Quarteto de Cordas opus 133 de Beethoven para que ele ouvisse um momento máximo da história da música. Ouviu tudo atentamente enquanto, no ritmo exato do quarteto, jogava um game, no Xbox. Beethoven e o game se uniram em harmonia. Talvez haja futuro.'


     Publicado originalmente no jornal O Estado de São Paulo em 03 de dezembro de 2013.

Comentários

Comente aqui este post!
Clique aqui!

 

Também recomendo

  •    Quando uma pessoa começa a melhorar de vida, pensa logo em comprar uma boa casa. E o que é uma boa casa? É preciso um jardim e uma piscina, imaginam os pais. Eles querem para as crianças uma infância saudável, com confortos que nunca tiveram, mas não pensam no principal: um quintal. Um quintal não precisa ser grande, e o chão deve ser de...   (continua)


  •      Lembrei de uma história que meu pai contava.
       "Um rei tinha uma filha tão inteligente que decifrava imediatamente todos os problemas que lhe davam. Ficou com essa habilidade, muito orgulhosa, e disse que se casaria com o homem que lhe desse uma adivinhação que ela não descobrisse a explicação dentro de três dias. Vieram rapazes de toda parte e nenhum...   (continua)


  • "A vida é como jogar uma bola na parede:
    Se for jogada uma bola azul, ela voltará azul;
    Se for jogada uma bola verde, ela voltará verde;
    Se a bola for jogada fraca, ela voltará fraca;
    Se a bola for jogada com força, ela voltará com força...
    (continua)


  •      Ao viajar pelo Oriente mantive contatos com monges do Tibete, da Mongólia, do Japão e da China. Eram homens serenos, comedidos, recolhidos e em paz nos seus mantos cor de açafrão. Outro dia, eu observava o movimento do aeroporto de São Paulo: a sala de espera cheia de executivos com telefones celulares, preocupados, ansiosos, geralmente comendo mais do que deviam.   (continua)


  •    Não me interessa o que você faz para ganhar a vida. Quero saber o que você deseja ardentemente, se ousa sonhar em atender aquilo pelo qual seu coração anseia. Não me interessa saber a sua idade. Quero saber se você se arriscará a parecer um tolo por amor, por sonhos, pela aventura de estar vivo. Não me interessa saber que planetas estão em quadratura com a sua lua...   (continua)


  •    Que o ser humano não é completamente racional não é novidade para ninguém. Mas o surpreendente é que cometemos equívocos de pensamento mesmo quando acreditamos que estamos usando a lógica. Essas escorregadas são a matéria-prima do livro A Arte de Pensar Claramente, escrito por Rolf Dobelli...   (continua)


  •      Praticar a generosidade, a disciplina ética, a paciência, a sabedoria, o esforço entusiástico e a concentração levam a um estado de bem-estar e felicidade plenos. Saiba como trazê-las para seu dia a dia e ter mais qualidade de vida. Imagine como seria se cada um de nós, ao nascer, recebesse um roteiro para encontrar a tão sonhada felicidade...   (continua)


  •    Maquiavel: o nome é todo um programa. E "maquiavélico" é adjetivo que dispensa apresentações. Quando acusamos alguém de maquiavelismo, não precisamos acrescentar mais nada. O sujeito é imoral, hipócrita, mentiroso, potencialmente violento. Uma mistura de Charles Manson com Hannibal Lecter, digamos. Estaremos a ser injustos com o florentino?   (continua)


Copyright 2011-2025
Todos os direitos reservados

Até o momento,  1 visitas.
Desenvolvimento: Criação de Sites em Brasília