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Retrato do Brasil - Dorrit Harazim, O Globo

Enviado por Gilberto Godoy
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   Foi sempre proveitoso ouvir o baiano Milton Santos. Impossível entrevistá-lo sem aprender montes com esse brasileiro detentor da honraria mais cobiçada pela nata da geografia mundial — o Prêmio Internacional Vautrin Lud, costumeiramente chamado de Nobel de uma disciplina que não tem Prêmio Nobel.

   “O maior erro que a Geografia cometeu foi o de querer ser ciência, em vez de ciência e arte. Não é maravilhoso saber que o filósofo alemão Immanuel Kant foi o primeiro catedrático com diploma em Geografia?”, lembrava ele.

   Formado em Direito, doutor em Geografia pela Universidade de Strasbourg e forçado ao exílio após o golpe militar de 1964, Santos rodou o mundo disseminando saber nas universidades de Toronto, Columbia, Paris, MIT, Caracas e Dar es Salaam antes de retornar ao Brasil. Jamais perdeu o costume de tratar o interlocutor de vosmecê.

   Em suas aulas de pós-graduação na Universidade de São Paulo nos anos 1990, costumava acolher cada aluno egresso da Economia como se estivesse salvando um brasileiro a mais. Ensinava que valores locais produzem cidadania melhor. Ou, pelo menos, algum tipo de cidadania. “A força do consumo em moldes globais leva ao abuso da palavra ‘usuário’ como substitutivo de ‘cidadão’, inclusive na literatura acadêmica”, apontava já à época. “E no discurso político ela leva ao abuso da palavra ‘cidadão’ como sinônimo de ‘consumidor’ , acrescentava.

   Do rico baú de vinhetas da vida brasileira que colecionou até morrer em 2001, Santos contava com predileção um causo ocorrido na Salvador de meados dos anos 1950.

   O geógrafo tinha ido visitar um amigo que acabara de se mudar para um edifício recém-erguido num bairro então emergente da capital baiana. Os felizes proprietários haviam comprado as unidades na planta, e tudo fora construído de acordo com o combinado. À exceção dos elevadores.

   Simplesmente faltara dinheiro para o item que daria ao prédio o obrigatório selo obrigatório de respeitabilidade esperado: a instalação de dois ascensores, um social e um de serviço. Os recursos eram suficientes para apenas um.

   Diante da recusa dos condôminos em arcar com o pesado encargo adicional, foi preciso encontrar uma solução emergencial. Embora não sendo a fórmula ideal, os novos proprietários conformaram-se com o que foi possível: uma curiosíssima divisória mambembe construída no interior de um mesmo e único elevador.

   Assim, de um lado da gaiola que ascendia e descendia, passaram a espremer-se, de um lado da divisória os moradores; do outro, a criadagem. Estava salva a reputação do prédio e a higienização social do espaço. Nenhum dos dois grupos abria a boca, pois a divisória não era à prova de som.

   Hoje, como se sabe, leis municipais e estaduais sobre uso de elevadores sociais proíbem qualquer forma de discriminação por raça, sexo, cor, origem, condição social, idade, porte ou presença de deficiência e doença não contagiosa. Em princípio, apenas quando estiver em trajes de banho ou em serviço de obras, transportar volumes ou cargas alguém pode ser orientado a utilizar o elevador “dos fundos”.

   Na prática, como também se sabe, na maioria dos condomínios brasileiros o bípede serviçal, mesmo quando desmunido de qualquer sacola, continua a dirigir-se automaticamente para o elevador de carga. Embora com a lei a seu favor, prefere não arrumar encrenca com quem faz as leis no país. A legislação de 2013 que ampliou benefícios para os trabalhadores domésticos em nada alterou o Brasil de duas portas.

   Na semana da posse-relâmpago de Michel Temer, o 16º ocupante da Presidência desde os tempos da invenção do elevador com divisória, o episódio narrado por Milton Santos teve um revival que mereceria ter sido captado em vídeo.

   A cena se passou num condomínio de classe alta do bairro de Botafogo, num Rio de Janeiro ainda embalado em sonhos de civilização pós-olímpica. Três senhoras de mesma faixa etária caminhavam lado a lado por um longo corredor, rumo aos elevadores que as depositariam no térreo. Duas portavam bolsas, uma levava uma sacola dobrada debaixo do braço. Conversavam.

   Por mero acaso, um elevador de serviço e outro, social, estavam de prontidão quando o trio aportou. Sem que qualquer palavra fosse pronunciada, a mulher de sacola entrou no ascensor de serviço e as senhoras de bolsa se dirigiram ao social. Com igual naturalidade empregada e patroas voltaram a se reunir no desembarque e continuaram a caminhada lado a lado, talvez rumo a compras.

   Milton Santos se definia como um “cidadão-geógrafo brasileiro” e tinha uma teoria geral do espaço humano. Por ser negro, passou a vida sendo recepcionado em inglês por tripulações aéreas brasileiras quando viajava de primeira classe.

   O retrato do Brasil carimbado pela posse de Michel Temer e o lugar que cabe a cada brasileiro nos elevadores do país dariam poucas alegrias ao grande geógrafo. O medo do contágio social mudou pouco. Uma matéria-prima para a construção da nação continua em falta: cidadania. Tristes trópicos.

     Fonte: O Globo

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