Aguarde por gentileza.
Isso pode levar alguns minutos...

 

"Ave, Palavra", livro póstumo de Guimarães Rosa

Enviado por Gilberto Godoy
-ave--palavra---livro-postumo-de-guimaraes-rosa

      Por Chico Lopes, do site Cronópios

     “Ave, Palavra”, deve-se dizer de início, é para fãs de Guimarães Rosa. Dificilmente alguém que não tenha freqüentado um tanto do universo do escritor e amado cada momento de, por exemplo, “Grande Sertão: Veredas”, poderá gostar do livro e aceitar as brincadeiras de Rosa com a palavra.

     “Brincadeiras” em termos, porque se trata do trabalho do maior artista da palavra que a literatura brasileira conheceu. Se resta na cabeça de alguém uma concepção muito estreita do que é o brincar, não haverá captação apropriada do espírito do livro. Rosa foi um enorme de um criador, e, como todo grande criador, não deixou morrer em si um moleque curioso e travesso.

     O livro é uma publicação póstuma e a edição que comento é a quinta, pela editora Nova Fronteira, feita em 1988. O próprio Rosa o classificou como “miscelânea”. São textos sem definição (o que se pode dizer de alguns livros de Clarice Lispector). Há até poesia. Quem leu o “Magma”, livro de poesia com que Rosa iniciou sua carreira e que ele rejeitava, sabe que ele não era grande poeta. Quer dizer: não para versos. É na prosa que toda a sua densidade poética se encontra.

     Leia-se “Os Inhos Engenheiros”, página 54, e tente-se imaginar alguma coisa sobre passarinhos tão bem escrita quanto essa. Não dá. Rosa é o máximo. Ele simplesmente realiza o sonho de todo escritor: pega a coisa (a fugidia Coisa de que Clarice Lispector tanto falava) com o vocábulo. A fugacidade impenitente, o mistério inesgotável da Coisa só pode ser capturada por gente inventiva para além de todos os limites.

     “Onde eu estava ali era um quieto. O ameno âmbito, lugar entre-as-guerras e invasto territorinho, fundo de chácara. Várias árvores. A manhã se-a-si bela: alvoradas aves. O ar andava, terso, fresco. O céu – uma blusa. Uma árvore disse quantas flores, outra respondeu dois pássaros. Esses, limpos. Tão lindos, meigos, quê? Sozinhos adeuses. E eram o amor em sua forma aérea.  Juntos voaram, às alamedas frutíferas, voam com uniões e discrepâncias. Indo que mais iam, voltavam. O mundo é todo encantado. Instante estive lá, por um evo, atento apenas ao auspício.

...

     O tico-tico, no saltitanteio, a safar-se de surpresa em surpresa, tico-te-tico no levitar preciso. Ou uma garricha, a corruir, a chilra silvestriz das hortas, de traseirinho arrebitado, que se espevita sobre a cerca, e camba – apontada, iminentíssima. De âmago: as rolas. No entre mil, porém, este par valeria diferente, vê-se de outra espécie – de rara oscilabilidade e silfidez. Quê?Qual? Sei, num certo sonho, um deles já acudiu por “o apavoradinho”, ave Maria! E há quem lhes dê o apodo de “Mariquinha Tece-Seda.” São os que sim sós. Podem se imiscuir com o silêncio. O ao alto. A alma arbórea. A garça sem pausas. Amavio. São mais que existe o sol, mais a mim, de outrures. Aqui estamos dentro da amizade.”

     Magia de um mago só

     Esse texto sobre passarinhos é tão bonito, tão revelador, tão inteiro em sua integridade (não há como não ser redundante) que dá vontade de transcrevê-lo todo. Textos assim, simplesmente mágicos (em que pese a banalidade-clichê do adjetivo), há pelo livro todo. Salvam-no, aliás, da dispersividade inerente desse não-gênero, a “miscelânea”, que em geral define livros que reúnem coisas tiradas de jornais ou escritas para tal e qual revista em tempos diferentes, sob as circunstâncias mais diversas.

     “Ave, Palavra” acaba por ser um livro essencial para quem admira o escritor. E o problema de admirá-lo, aliás, tem dado muita literatura ruim. Em geral, os imitadores de Rosa não são tão admiráveis. A admiração pelo seu ídolo lhes fez considerável mal, em muitos casos. Parecem não ter entendido nunca que era preciso evitar a sedução dos estilemas, de uma prosa demasiado original que é fácil de pegar pelas exterioridades.

     O sentido é o que importa. O sentido e a emotividade profunda de um homem que sente profundo e que, por isso, precisa de recursos extras da linguagem para atingir seu máximo de real não-fácil. Rosa é gênio não só da invenção verbal, mas da emoção, não é um inventor banal de neologismos e um sujeito bizarro obstinado na bizarrice para chocar.

     Sua magia é a de um mago só. Ficou sozinho, com sua grandeza. Muitos de seus seguidores simplesmente foram esquecidos, e, mesmo hoje, quem se deixa influenciar muito por ele, corre o risco de não escapar a uma mediocridade pomposa. A única maneira de bem recebê-lo é respeitando-o em sua integridade. Sua lição, se podemos extrair uma, é pedir mais singularidade dos singulares. É preciso avançar sempre para uma diferença que não seja mero ornamento, mera pirotecnia.

     “Ave, Palavra”, além de sua beleza sobre bichos, traz o texto já famoso com que Rosa definiu Minas e mineiros. Aí, falando das várias regiões do estado, citando o Sul de Minas, eis o que ele disse: “É o Sul cafeeiro, assentado na terra roxa de declives ou em colinas que européias se arrumam, quem sabe uma das mais tranqüilas jurisdições da felicidade neste mundo”.

     “Jurisdição da felicidade” soa muito apropriado para mim, que moro há 14 anos em Poços de Caldas, que Rosa, aliás, também cita no livro. Quando vim do interior de São Paulo para cá, pelo quê me apaixonei? Precisamente por essas “colinas que européias se arrumam”. Pelo ar limpíssimo. Pelo azul, por vezes de deixar atônito, dos céus. Por uma beleza que parece eleita, pela idéia de que a felicidade corre aqui, numa jurisdição muito própria. Aqui, onde uma alma pode, pássara, “imiscuir-se com o silêncio”.

     Coisa do maior escritor mineiro, e talvez o maior escritor brasileiro de todos os tempos.

     Chico Lopes é escritor (“Nó de sombras” e “Dobras da noite”, contos, IMS-SP, 2000 e 2004) e crítico de cinema do Instituto Moreira Salles de Poços de Caldas, MG.

Comentários

Comente aqui este post!
Clique aqui!

 

Também recomendo

  •    Tenho um amigo jornalista que adora fazer listas de preferência: os 10 mais de todos os tempos, os 100 piores, os 1000 imperdíveis, e por aí vai. Desconfio que ele se sinta em êxtase até mesmo quando a esposa coloca em suas mãos uma reles lista de compras do supermercado.   (continua)


  • "Ser ou não ser, eis a questão.
    O que é mais nobre? Sofrer na alma
    As flechas da fortuna ultrajante
    Ou pegar em armas contra um mar de dores
    Pondo-lhes um fim? Morrer, dormir
    (continua)


  •      "Esse espanto perante a ordem é a primeira inspiração da ciência. Quando um cientista enuncia uma lei ou uma teoria, ele está contando como se processa a ordem, está oferecendo um modelo de ordem. Agora ele poderá prever como a natureza vai se comportar no futuro. É isto que significa testar uma teoria: ver se, no futuro, ela se comporta da forma como o modelo previu."   (continua)


  •    A moral política não pode proporcionar à sociedade nenhuma vantagem durável, se não for fundada sobre sentimentos indeléveis do coração do homem. Toda lei que não for estabelecida sobre essa base encontrará sempre uma resistência à qual será constrangida a ceder. Assim, a menor força, continuamente aplicada, destrói por fim um corpo que pareça sólido, porque...   (continua)


  •    "As qualidades que eu admirava no meu pai eram a sua brandura, a sua firme recusa em se desviar de qualquer decisão a que tinha chegado, a sua completa indiferença às falsas honrarias; o seu esforço, a sua perseverança e vontade de ouvir atentamente qualquer projecto para o bem comum; a sua invariável insistência em que as recompensas devem depender do mérito; o seu hábil sentido de oportunidade para puxar ou soltar as rédeas...   (continua)


  •      Muito interessante este link para os que gostam de literatura. Vale a pena!

          http://revistaescola.abril.com.br/swf/jogos/jogoLiteratura/
     


  •    Ainda que uma lista de "melhores" em qualquer coisa sempre termine em polêmica, talvez ditos questionamentos seriam menores se a lista fosse realizada por pessoas experimentadas no tema ou no mínimo com um grau aceitável de conhecimento sobre o mesmo. E em literatura, talvez poucas pessoas sejam tão apropriadas para opinar sobre o assunto...   (continua)


  •    Em outro capítulo falei de Adolpho Bloch, não o atual, o milionário de Manchete. Não. O fundador de um império grá­fico interessa menos. O grande Adolpho é o de Pereira Nunes, de pé descalço e calça furada. Era menino e passava fome. Ho­je, ele muda de automóvel como de camisa. Todo o dia sai com um carro novo. E aqui está o suave milagre: ...   (continua)


Copyright 2011-2024
Todos os direitos reservados

Até o momento,  1 visitas.
Desenvolvimento: Criação de Sites em Brasília