Aguarde por gentileza.
Isso pode levar alguns minutos...

 

Coisas da vida - Pablo Neruda

Enviado por Gilberto Godoy
coisas-da-vida---pablo-neruda

“Tem coisa mais boba na vida
que chamar-se Pablo Neruda?
Que vim fazer neste planeta?
A quem dirijo esta pergunta?
E que importância tenho eu
no tribunal do esquecimento?
Não era verdade que Deus
vivia no mundo da lua?
Minha poesia desgarrada
abr’olhos com estes olhos meus?
Por que me picam as pulgas e os
sargentos da literatura?
Que dirão da minha poesia
os que não tocaram meu sangue?
Posso perguntar ao meu livro
se eu mesmo o escrevi? Desde quando?
Por que nas épocas obscuras
se escreve com uma tinta extinta?
E por que detesto as cidades
com cheiro de mulher e urina?
Quem devorou rente aos meus olhos
um tubarão cheio de pústulas?
Por que andam as ondas me indagando
sobre as mesmíssimas perguntas?
Por que não nasci misterioso?
Por que cresci sem companhia?
Das tais virtudes que esqueci
dá pra fazer um terno novo?
Onde está o menino que fui:
anda comigo ou evaporou-se?
Sabe que nunca fui com ele
nem ele comigo tampouco?
Por que estivemos tanto tempo
crescendo para essa ruptura?
Quando minha infância se foi
por que nós dois não fomos junto?
Ainda ontem disse aos meus olhos:
quando de novo nos veremos?
Não é melhor nunca que tarde
dentro de listões amarelos?
Em que janela me quedei
em busca do tempo, se pulcro?
Ou o que diviso destes ermos
ainda não passa de futuro?
Que me esperava em Ilha Negra:
verdades verdes? compostura?
Se morri e não me dei conta
morto, a’hora, a quem me pergunto?
Quem me mandou desvencilhar-me
das portas do meu amor-próprio?
É verdade que um condor negro
sobrevoa minha pátria noite?
Que há de pesar mais na cintura:
padecimentos? memórias?
Que deu em mim de transmigrar
se vivem no Chile meus ossos?
Por que me movo sem querer?
Por que estou sempre desinquieto?
E se minh’alma desabou
por que meu esqueleto prossegue?
Por que vou girando sem rodas
e voando sem asas nem penas?
Por que minha roupa desbotada
se agita como uma bandeira?
E que bandeira tremulou
no espaço em que não me esqueceram?
Pois não foi onde me perderam
que eu me dei, enfim, por achado?
Esse onde onde termina o espaço
se chama de morte ou infinito?
Por que voltei à indiferença
do maroceano desmedido?
Achas que o luto te antecipa
à bandeira do teu destino?
Se caí no laço do mar
por que fechei os meus caminhos?
Que significa persistir
no beco da morte-sem-saída?
E no mar do não-passa-nada
mortalha faz algum sentido?
Por que trabalham sal e açúcar
construindo-se uma torre branca?
Onde fica o umbigo do mar?
Por que até ali não chegam as ondas?
Foi das costas do mar que eu vim:
para onde vou quando me atalha?
Não sentes também o perigo
na gargalhada do maralto?
Onde terminará o arco-íris:
dentro da alma ou no horizonte?
Vejo de novo o mar ab ovo:
o mar me viu ou botou banca?
Não choras rodeado de risos
- só – com as garrafas do vazio?
Quanto media o polvo negro
que obscureceu a paz do dia?
Não será nossa vida um túnel
entre duas vagas claridades?
Ou não será uma claridade
entre dois triângulos escuros?
E não achas que a morte vinga
dentro do sol de uma cereja?
Ou que em perigosas substâncias
do não ser, a morte lateja?
Devo escolher esta manhã
entre o céu e o mar, tudo ou nada?
Quem sabe lá de onde é que vem
a morte: de cima ou de baixo?
A morte não seria enfim
uma cozinha interminável?
Ou não seria a vida um peixe
preparado para ser pássaro?"

 

Comentários

Comente aqui este post!
Clique aqui!

 

Também recomendo

  • "O que penso eu do mundo?
    Sei lá o que penso do mundo!
    Se eu adoecesse pensaria nisso.
    Que idéia tenho eu das cousas?
    Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
    ​(continua)


  • "Eu vou te contar que você não me conhece
    E eu tenho que gritar isso porque você está surdo e não
    Me ouve
    A sedução me escravisa a você
    Ao fim de tudo você permanece comigo mas prezo ao que
    Eu criei...
    (continua)


  •    “É preciso estar sempre embriagado. Eis aí tudo: é a única questão. Para não sentirdes o horrível fardo do tempo que rompe os vossos ombros e vos inclina para o chão, é preciso embriagar-vos sem trégua. Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa maneira. Mas embriagai-vos...  (continua)


  •      "Minh'alma, de sonhar-te, anda perdida
    Meus olhos andam cegos de te ver!
    Não és sequer razão de meu viver,
    Pois que tu és já toda a minha vida!
    Não vejo nada assim enlouquecida...
    (continua)


  • “Donde vem? onde vai?  Das naus errantes 
    Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço? 
    Neste saara os corcéis o pó levantam,  
    Galopam, voam, mas não deixam traço.
       Bem feliz quem ali pode nest'hora 
    Sentir deste painel a majestade!
    (continua)


  • “N’algum lugar em que eu nunca estive,
    Alegremente além de qualquer experiência, teus olhos têm o seu silêncio:
    No teu gesto mais frágil há coisas que me encerram
    Ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto
    (continua)


  • Essa lembrança que nos vem às vezes...
    folha súbita que tomba
    abrindo na memória a flor silenciosa
    de mil e uma pétalas concêntricas...
    Essa lembrança...mas de onde? de quem?
     (continua)


  • “Deu-me Deus o Seu Gládio, porque eu faça
            A Sua santa guerra.
    Sagrou-me Seu em génio e em desgraça
    As horas em que um frio vento passa...
    (continua)


Copyright 2011-2024
Todos os direitos reservados

Até o momento,  1 visitas.
Desenvolvimento: Criação de Sites em Brasília